terça-feira, 3 de setembro de 2013

O bicho preguiça.

 
Ela tinha o odor de alpiste. Não sei o porquê, mas sei de que era o cheiro dela, pois cuidei diuturnamente de doze gaiolas de Sabiás, Graúna, Saíras, Cancã, Tico-tico, Curió e Canários no quintal de um tio. O cheiro de mamão e goiaba passados ainda me causa repulsa, nem todos os dias são felizes quando somos crianças, os meus foram, naquele quintal com o Duque, um pastor alemão enorme que era o protetor dali, o cão mais resistente do mundo, nós éramos os herdeiros daquele reino. O reino das bananeiras, onde meu primo insano fazia o que queria, no meio de lagartas e lagartixas a nos olhar, e afirmar com a cabeça quando perguntávamos quem são os donos do lugar, as que não concordavam, nós as enxotávamos, foram asiladas do reino de um Rei e Duque tão cruéis.
 
Ela tinha os olhos tristes e estava um pouco acima do peso, o cabelos desgrenhados, e sempre um sorriso no rosto, e nunca me encarava, naquele dia não era diferente, mas meus amigos tiravam sarro dela, numa brincadeira tola, chamando-a de fedorenta nos corredores da escola, e eu que já tinha sido cruel com lagartixas, achava aquilo terrível, aquilo era estranho, mesmo no reino das bananeiras.
 
Lembrei de um dia que outros amigos de outra rua pegaram um bicho preguiça, lembrança mais recente que as do reino, e como verdadeiros descendentes de índios selvagens do Amazonas, a mataram, extirparam, tiraram o seu couro e a cortaram em nacos de carnes. Eles moravam na parte de cima da rua, e todas às vezes que ia pegar o ônibus da escola, lembrava deste dia, dos braços abertos dela, como pedindo algo para se agarrar para não cumprir aquele destino. Ela não teve chance sobre aquela pedra fria do tanque de lavar roupas, que via da rua quando passava por lá. Parecia natural, aquele instinto para saciar a fome, a destreza da faca, o perder do brilho dos olhos daquela vítima sem reação, pega pelo dorso e de braços abertos, a suplicar.
Agora os amigos de hoje corriam e gritavam com ela. E ela desesperada corria deles, entrou no banheiro e só escutávamos o berro e o choro dela.

Pouco tempo depois, o que seria mais fácil com o Duque ao meu lado, como naquela tarde no campo de futebol que intimidamos os quatro encrenqueiros da rua de baixo; Tomei a frente deles e disse que era errado aquilo, que não podiam fazer isso com ela, só por ela ser diferente. No que eles, os dantescos, passaram a gritar que éramos namorados, fiquei atônito. O líder dos dantescos tinha a mesma tez do irmão mais velho dos índios amazônicos, lembrei do bicho preguiça, dos sorrisos de satisfação, onde está o Duque? – Morreu anos depois que deixei o reino, meu tio disse que vivia acabrunhado. Eles morreram.
Ainda atônito, escutei um grito assustador por detrás de mim, algo tinha se soltado, vindo do banheiro, a porta aberta de supetão, ela passou por mim como se eu não existisse e agarrou o sósia do Pajé, usando suas unhas como as garras do bicho, ou a faca na mão do índio, com a mesma habilidade, enquanto rolavam no chão, agora eu não era o único atônito ali. Ela se pôs de pé, e pela primeira vez me olhou nos olhos, com um olhar assustado, as mãos ensanguentadas do falso índio, e correu de volta para a sala de aula. Aquele momento nunca mais saiu da minha mente, aos 13 anos, percebi que alguns se colocam de pé só, mas por medo que a verdade mais profunda seja descoberta, hoje mais velho sei que é, e que nada é claro e simples, como antes, no reino das bananeira, onde as lagartixas diziam  sim, ao Rei e Duque cruéis.
  
O rei morreu também neste dia.