domingo, 29 de abril de 2012

O que vem da Bahia...


"Minha oposição a religiões não dá direito a ninguém de insinuar que só acredito na ciência ou mesmo que sou ateu. Se ateu é aquele que não acredita em UM Deus, então podem até chamar-me assim, mas eu apenas repudio o Deus absoluto dos monoteístas, sobretudo dos cristãos. Não tenho nada contra mitologia grega, hinduísmo, candomblé, xintoísmo, taoísmo... O que não posso conceber é um Deus racional e único que organizaria o universo, porque simplesmente eu não acho o universo tão racional e organizado quanto religião E ciência pensam. Quando eu tenho que escolher entre ciência e religião, prefito a ciência por motivos epistemológicos, pelo fato de a ciência ao menos conceber que pode estar errada e já saber atualmente que seu conhecimento é sempre insuficiente, coisa que as religiões monoteístas não fazem. Eu acredito (e faço questão de dizer que é só uma crença arraigada em mim, não é uma certeza nem quero que o seja) que o universo SE forma (não é criado) a partir de forças irracionais, autônomas e impossíveis de serem concebidas, reveladas, verificadas ou percebidas por meios científicos ou religiosos... e que a interação conflituosa dessas forças, sua tensão e tensa estabilização em cada momento considerado (momento que poder durar bilhões de anos), forma sempre alguma coisa que parece ordem e que a ciência e a religião tentam explicar, descrever ou prever sistematicamente. Se sou contra religião e ciência é porque elas concebem que o mundo é tão monótono que suas leis e regras estão (ao menos em linhas mais gerais) essencialmente dadas desde sempre e que por isso podem ser reveladas ou descobertas; e eu não quero essa monotonia, quero a possibilidade de o mundo criar-se e recriar-se sempre, eternamente, a todo instante, sem inferno nem paraíso, quero que não haja vida após a morte para que ESTA vida seja rara e bela, digna de ser vivida por si e para si. Deus e a ciência são para mim apenas simplificações que não passam de adoração disfarçada ao homem e um profundo empobrecimento da vida. E o universo não precisa do homem nem de coisa alguma que este intitule deus. Para terminar, sei que o que eu penso não é pensado por ninguém e que a maioria pode dizer que estou louco, mas eu faço questão de pensar de tal forma que meu pensamento não seja o da maioria e que jamais possa ser completamente sintetizado em qualquer livro e por nenhum pregador, seja ele padre ou cientista, ambos para mim farinha do mesmo saco. Não preciso de "salvação" por parte do primeiro nem de explicação por parte do segundo. Arte e Filosofia me bastam para viver intensamente. Agora podem apedrejar, pois nem suas cruzes e Bíblias nem seus telescópios e microscópios mais potentes podem me fazer deixar de pensar como eu penso. Eu crio minha religião e minha ciência, só assim posso acreditar profundamente. Não escrevo para maiorias nem para um público determinado, escrevo apenas para que aqueles que pensam de forma PARECIDA com a minha não se sintam sozinhos nem precisem andar por aí tentando convencer ninguém."


Texto do filósofo baiano Waldísio Araujo, a que chamo de amigo.





Que fazer com este absurdo?



William Butler Yeats


A TORRE


I


Que fazer com este absurdo —
Oh coração, Oh inquieto coração — esta caricatura,
Esta decrépita idade que me ataram
Como à cauda de um cão?
Nunca tive
Mais exaltada, apaixonada, fantástica 
Imaginação, nem olhos e ouvidos 
Que mais esperassem o impossível — 
Não, nem na infância quando com cana e mosca, 
Ou o mais humilde dos vermes, subia a encosta de Ben Bulben 
E tinha onde passar o interminável dia de Verão. 
Parece que tenho de despedir a Musa, 
Eleger como amigos Platão e Plotino 
Até que a imaginação, olhos e ouvidos, 
Se satisfaçam com a argumentação e lidem 
Com o abstracto; ou permitir a troça 
Como se levasse um tacho velho nos calcanhares.




II


Caminho entre as ameias e contemplo
Os alicerces de uma casa, ou ali onde
Uma árvore, como dedo tisnado, se ergue da terra;
E para diante lanço a imaginação
Sob o luminoso dia que declina, e invoco
Imagens e memórias
De ruínas ou de árvores antigas,
Pois a todos interrogarei.


Atrás da colina vivia a senhora French, e uma vez 
Quando velas e candelabros de prata 
Iluminavam o escuro mogno e o vinho, 
Um criado que adivinhava sempre 
Todos os desejos de tão respeitável dama, 
Correu e com as tesouras do jardim 
Podou as orelhas de um labrego insolente 
E trouxe-as num pratinho coberto.


Alguns ainda se lembravam de quando sendo eu jovem
Uma jovem camponesa por canção louvada,
Que vivia algures nessas paragens rochosas,
Louvada pelas cores do seu rosto,
E com grande júbilo ainda mais louvada,
Lembrando que, ao passar pela feira,
Os labregos se acotovelavam
Tal a glória que conferia essa canção.


E outros, enlouquecidos pêlos versos,
Ou por ela brindarem tantas vezes,
Levantavam-se da mesa e declaravam justo
Provar com a vista tal fantasia;
Mas confundiram o brilho da lua
Com a prosaica luz do dia —
A música toldou-lhes a razão —
E um deles afogou-se no grande pântano de Cloone.


Estranho; quem fizera a canção era cego;
Mas, pensando bem, não acho
Nada estranho; a tragédia começou
Com Homero que também era cego,
E Helena atraiçoou tanto coração palpitante.
Oh, podem lua e sol parecer
Um raio inextricável
Pois se triunfar tornarei os homens loucos.


E eu próprio criei Hanrahan 
E ébrio ou sóbrio levei-o pela aurora 
De algures junto às cabanas. 
Apanhado nas armadilhas de um velho, 
Tropeçou, caiu, tacteou aqui e ali 
E como paga só teve os joelhos partidos 
E o horrível esplendor do desejo; 
Em tudo isto pensei há vinte anos:
Os amigos jogavam às cartas num velho estábulo;
E quando chegou a vez do antigo rufia
De tal modo com os dedos enfeitiçou as cartas
Que todas menos uma se transformaram
Em matilha de cães e não baralho de cartas,
E àquela em lebre transformou.
Frenético, Hanrahan levantou-se então
E as criaturas que ladravam seguiu até —


Oh, até onde já me esqueci — mas basta! 
Devo evocar um homem a quem nem o amor 
Nem a música nem a orelha cortada do inimigo 
Podiam, em tal tormento, alegrar; 
Figura já tão fabulosa 
Que não resta vizinho capaz de dizer 
Quando terminou o seu dia de canícula: 
Um antigo dono falido desta casa.


Antes de chegar essa ruína, durante séculos,
Rudes guerreiros, com jarreteiras nos joelhos
Ou de ferro calçados, subiam as escadas estreitas,
E havia guerreiros cujas imagens
Na Grande Memória guardadas,
Chegavam aos gritos e ofegantes
Perturbando o sono daquele que dormia
Enquanto os seus grandes dados de madeira batiam no tabuleiro.


Como a todos interrogaria, pois venham todos os que puderem;
Venha o velho, indigente e aleijado;
Venha e traga o cego errante que celebrou a beleza;
O homem vermelho que o prestidigitador enviara
Para esse prados abandonados por Deus; a senhora French,
De tão apurado ouvido;
O homem afogado no lodo do pântano,
Quando Musas trocistas elegeram a jovem camponesa.


Será que velhos homens e mulheres, ricos e pobres,
Que estas rochas pisaram, que por esta porta passaram,
Em público ou em segredo se indignaram
Como agora o faço eu contra a velhice?
Mas encontrei resposta nesse olhos
Impacientes por partir;
Sim, ide, mas deixai Hanrahan,
Porque preciso das suas poderosas memórias.


Velho libertino com um amor em cada vento,
Retira dessa mente profunda e pensativa
Tudo o que no túmulo descobriste.
Pois é certo que te dás conta
De cada aventura imprevista, cega,
Que suaves olhos tentadores,
Ou carícias ou suspiros atraíram
Ao labirinto de outro ser;


Mais se demora a imaginação
Na mulher ganha ou na mulher perdida?
Se na perdida, admite que te afastaste
De um grande labirinto por orgulho,
Cobardia, alguma parva e excessiva subtileza
Ou qualquer coisa que já se chamou consciência;
E que se à memória se recorre, o sol
Entra em eclipse e o dia em extinção.


III


É tempo de fazer o meu testamento; 
Escolho os homens que se erguem
Esses que sobem as correntes até
Às próprias fontes, e pela aurora
Lançam o anzol à berra
Da pedra que brota; declaro
Que herdem o meu orgulho,
O orgulho de quem
Nunca foi prisioneiro de Causa nem Estado,
Mas não aos escravos humilhados
Nem aos tiranos que humilham;
Sim às gentes de Burke e de Grattan
Que deram, podendo recusar —
Orgulho idêntico ao do amanhecer,
Quando se solta a temerária luz,
Ou o orgulho do corno fabuloso,
Ou do súbito aguaceiro
Quando secas estão todas as correntes,
Ou o orgulho dessa hora
Em que o cisne fixa o olhar
Num esplendor que se apaga,
Flutua num longo e derradeiro
Esforço pelas águas cintilantes
E canta a sua última canção.
E declaro a minha fé:
Rio-me do pensamento de Plotino
E grito na cara de Platão,
A morte e a vida não existiam
Até o homem tudo inventar,
Tudo conceber,
Tudo fazer com a sua alma amargurada,
Sim, e o sol e a lua e as estrelas; tudo,
E também a convicção de que,
Mortos, nos levantamos,
Sonhamos e assim criamos
Translunar Paraíso.
Fiz as pazes
Com sábias coisas italianas
E altivas pedras gregas,
Imaginação de poeta
E lembranças de amor,
Lembranças de palavras femininas,
Todas essas coisas de que
Um homem faz um sobre-humano 
Sonho semelhante a um espelho.


Como naquela seteira 
As gralhas gralham e gritam, 
E amontoam raminhos. 
E depois de amontoados, 
A mãe repousará 
Sobre o buraco ao cimo, 
Aquecendo o rude ninho.


Fé e orgulho deixo 
Aos jovens que se erguem 
E sobem a montanha, 
Para ao romper do dia 
Lançar o seu anzol; 
Desse metal fui feito 
Antes de o quebrar 
Este ofício sedentário.


Agora edificarei a minha alma,
Exigindo-lhe estudo
Numa escola sábia
Até a ruína do corpo,
A lenta decadência do sangue,
Colérico delírio
Ou torpe decrepitude,
Ou os piores males que venham — 
A morte dos amigos, ou a morte 
Do brilho dos olhos 
Que cortava a respiração — 
Parecerem nuvens no céu 
Quando o horizonte se desvanece; 
Ou o sonolento grito de uma ave 
Entre as sombras que se afundam.


trad. JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA.

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